Educação ou evangelização? PL de vereador levanta polêmica em Conquista
- Da Redação

- 22 de mai.
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Durante a sessão ordinária da Câmara Municipal de Vitória da Conquista, nesta quarta-feira (21), o vereador Edivaldo Ferreira Júnior (PSDB) defendeu o projeto de lei de sua autoria que propõe o uso da Bíblia como material complementar nas escolas da rede municipal. A proposta, segundo o autor, tem como objetivo valorizar os ensinamentos morais e éticos presentes nas Escrituras, destacando sua influência histórica e cultural.
O parlamentar utilizou o preâmbulo da Constituição Federal, que menciona a “proteção de Deus”, para justificar o projeto. Segundo Edivaldo, os valores bíblicos são compatíveis com os princípios constitucionais da liberdade, igualdade, justiça e bem-estar.
“A Bíblia não é apenas um livro espiritual. É o livro mais vendido do mundo, com mais de 5 bilhões de cópias traduzidas para mais de 3 mil idiomas. Qual o problema de ela ser utilizada como apoio didático?”, questionou o vereador, que afirmou representar a maioria cristã da população conquistense.
Limites legais e a laicidade do Estado
Apesar da justificativa cultural apresentada pelo autor do projeto, especialistas apontam conflitos com a Constituição Federal, que estabelece que o Brasil é um Estado laico — ou seja, não adota religião oficial e deve manter neutralidade diante das crenças religiosas.
A laicidade é garantida no artigo 19, inciso I, da Constituição, que veda à União, aos Estados e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, salvo na forma de colaboração de interesse público.
Dessa forma, o uso da Bíblia como material pedagógico oficial em escolas públicas pode ser interpretado como uma violação do princípio da laicidade, sobretudo se não houver pluralidade de visões religiosas. Mesmo que a proposta não torne o livro obrigatório, sua inclusão privilegiada em ambiente escolar pode abrir margem para questionamentos judiciais, especialmente de pais ou alunos de outras crenças ou não religiosos.
Além disso, o artigo 206 da Constituição Federal garante a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, e prevê o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas como base do ensino. Um eventual favorecimento de uma doutrina específica pode ser considerado proselitismo religioso, o que é vedado em escolas públicas.
Em entrevista ao Portal Cubo, a advogada Thalia Assis, vice-presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB de Vitória da Conquista, criticou a proposta e apontou riscos jurídicos e sociais:
"A questão não é apenas a laicidade do Estado. Adotar a Bíblia como livro moral, ainda que sob o argumento de cultura e tradição, fere princípios constitucionais inegociáveis, como a liberdade de culto e a dignidade da pessoa humana. Um projeto desse tipo naturaliza o racismo estrutural, a eugenia, o machismo estrutural e uma ética excludente.
Além disso, o argumento baseado no preâmbulo da Constituição é juridicamente frágil. A menção a 'Deus' não significa a adoção da Bíblia nem da fé cristã como base estatal. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que o preâmbulo não tem força normativa e não pode ser usado como base jurídica para projetos de lei dessa natureza.
O mais grave é que impor uma ética religiosa específica, como a cristã, em escolas públicas exclui todas as outras formas de compreender o mundo — não apenas sob o ponto de vista religioso, mas também moral, cultural e social. Isso é filosoficamente incompatível com a civilidade contemporânea e eticamente irresponsável, sobretudo diante das consequências sociais que podem surgir, como o agravamento de preconceitos e violências.
E mesmo que os cristãos sejam numericamente maioria, a dignidade da existência humana e a liberdade de culto são direitos difusos, ou seja, pertencem a toda a sociedade. Portanto, independentemente de maioria ou minoria, é dever do Estado garantir a aplicação do princípio da equidade.”
O que pode e o que não pode?
É permitido abordar a Bíblia em aulas de História, Literatura ou Sociologia, por exemplo, como objeto de estudo — analisando sua influência cultural, artística ou política — desde que com caráter laico, crítico e acadêmico, e dentro de um currículo que também contemple outras tradições religiosas e filosóficas.
Não é permitido, no entanto, utilizar a Bíblia (ou qualquer livro religioso) como instrumento de doutrinação religiosa em escolas públicas. A imposição, direta ou indireta, de uma religião em ambiente escolar é considerada inconstitucional.
Próximos passos
O projeto ainda será analisado pelas comissões da Câmara Municipal e, se aprovado, segue para votação em plenário. Caso sancionado, a legalidade da lei pode ser questionada na Justiça por violar princípios constitucionais da laicidade e igualdade.



